Eu sei que vou te amar

Você vai entrar pela porta que eu deixei entreaberta, há uma hora que eu não descolo os olhos da luz de neon do hall que se fi ltra como um prenúncio da tua chegada. Antes de você chegar você já chega como uma nuvem que vem na frente, antes de você chegar eu ouço tua ansiedade vindo, tua luz, teu som nas ruas, teu coração batendo mais forte porque vai me encontrar… Eu sei que minha presença te fará nervosa, tuas mãos ficam úmidas, sei que você se arrumou melhor para me ver, sabe dos vestidos que eu gosto, botou uma calcinha sexy por via das dúvidas, eu sei que você sabe que eu sei de tudo que você era e que teu único tesouro é o que eu não sei mais… mulher… por isso, teu peito dispara e você vem vindo pela rua sem ar, e você vem e você chega e entra quebrando o realismo da sala, quando você entra muda tudo, a casa fica diferente, as cadeiras se movem, os vasos de rosa voam no ar, as mesas rodam, rodam e eu começo a perder o controle da minha solidão; sozinho eu me seguro, mas você chega e eu danço, pois você sabe de mil truques para me jogar no abismo… você chega e o terrível perigo do Outro se desenha; você é um ponto de interrogação, uma janela aberta para o ar, um copo de veneno, você é o meu medo, o mar fica em ressaca, fico à beira do riso e das lágrimas, perto do céu e perto do crime, um relógio de briga começa a contar os segundos da luta, uma multidão de fantasmas de terno e gravata me assiste com o coração sangrando, perco o controle e entramos os dois num barco em alto-mar, à deriva…

Você me chamou por telefone. Não te vejo há três meses… seis anos juntos e agora sem te ver… pela tua voz no telefone sei que você está controlando uma emoção, querendo bancar o homem seguro de si… e fi co desesperada porque mesmo assim você consegue fi ngir solidez e eu… e eu… ao ouvir tua voz, o mundo se acalma… tudo estava rodando e se acalma, minha casa estava cheia de perigos, as facas, os garfos me ameaçavam das gavetas, as agulhas, os remédios envenenados, os mosquitos e bichos voando nas janelas querendo me atacar e tua voz vem calma no telefone e eu sei que é mentira que você vive em pânico mas eu fico toda emocionada, fi co toda menina, toda protegida com o falso tom de bondade sórdida que tua pose de homem prático assume… e tua voz vem do mundo dos altos, dos fortes, e eu, mesmo sabendo dos perigos que esta paz me oferece, me arrumei toda para vir aqui ver você… penteei os cabelos negros que você ama, me pintei e então… tudo que se movia na casa se acalmou, pego um táxi e penso: “Tenho um homem” e salto na rua, mexem comigo e penso: “Chamo meu homem. Ele te bate!”… Sei que você é um covarde mas mesmo assim… Desde menina você já existia como uma nuvem no ar e subo confusa as escadas e entro em tua casa louca para procurar os vestígios das outras mulheres que te freqüentam… e sei que você vai me receber sólido e filho-da-puta, e aos poucos vai me provar que você é o porto seguro e eu a galera enlouquecida, que eu sou a porra-louca e você a maravilha, eu sei, canalha, mas eu suportarei a humilhação para poder ver teus olhos e pensar: “Meu homem, meu homem, meu homem perdido e sempre eternamente meu homem”… e eu sei que conseguirei te desagregar pouco a pouco e que no fi m da noite você estará caído feito um joão-ninguém entre pedaços de kriptonita e eu ajeitarei o batom, o salto alto e partirei vingada, pensando: “Dorme, meu homem… dorme, my baby, that’s my boy”… e vou voltar sozinha pro mundo onde tudo gira feito um carnaval de arlequim e vou ficar infeliz feito nada… mas vou entrar… ficar normal… te olhar nos olhos… fi car normal… a porta está entreaberta… vou abrir… no horizonte vão nascer os olhos dele… quanto menos eu falar, melhor…

Ela já está diante de mim há 55 segundos e dois décimos… eu estou obsessivo com este negócio de dirigir filme de publicidade… sei quantos segundos gasto para ir até a cozinha…

Os olhos dele nasceram… detrás dos olhos dele há outros olhos outros outros…
(…)
Acho que ela conseguiu… não me ama mais, me superou… melhor assim, fico mais livre… sorriso calmo… me esqueceu, dancei, ótimo, chega de inferno… dois adultos…

— Fala!
— Falar o quê?
— Não sei… palavras…
— Você está diferente…
— Você também… vira pra cá… sabe que eu tinha esquecido do teu cabelo assim…
— Cortei… é estranho… parece outra pessoa… três meses sem se ver dá uma distância…
— Você está mais moça, ar calmo…
— É claro… diminuiu a tensão… separação dói muito…
— Claro… também estou mais calmo… menos responsabilidade, menos horário… estou mais livre… mais calmo…
— É… eu te dava muito trabalho…
— Não… não é isso… você era ótima! É ótima!… nada disso… não tem nada a ver com a pessoa em si… é mais a estrutura em si do relacionamento, entende?

Como eu estou soando ridículo…

— Claro, a gente está ótima…
— A gente está ótima… claro…

Ela está rindo… como é linda a boca dela… isto: boca dela… um belo ato falho, uma cadela rindo… cadela nada, coitada… uma pobre mulher… lá vou eu com minha tendência pra ser mãe dela…

Já começou… me faz rir e vai me dobrando… começo a achar ele bom… agora, é mais interessante que aquele idiota que agüentei no motel falando da Bolsa… e o dentista erótico?.. se ele soubesse que eu dei pro dentista dele… coitado… o dentista deve estar metendo o motor na boca dele… boca dele… com sensação de triunfo…
(…)
Ela vai embora! Meu Deus! Pegou a bolsa! Vai embora!

— Eu vou embora… eu vou embora… não sei o que vim fazer aqui… sempre que a gente se aproxima se machuca… eu chego perto de você, me dou mal… passei meses com sentimento de culpa… e você… 27 mulheres… eu sou uma idiota… e você me acusando de ter estragado nosso casamento… com o olhar… me acusando…

– Arnaldo Jabor

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