Olhos de ressaca

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada.” Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que…

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe,–para dizer alguma cousa,–que era capaz de os pentear, se quisesse.

– Machado de Assis in “Dom Casmurro”


Lembro que fui ler esse livro por vontade própria. Nem passava pela minha cabeça prestar vestibular ou ler os livros da famosa lista da fuvest. Li por ler, pra dizer que eu já havia lido literatura. Na época, literatura pra mim era livro de se ler na escola. Li poucos, é verdade. Por isso quis compensar lendo Machado de Assis. Helena me decepcionou com suas cinco páginas de descrição de um simples decote. Daí apelei pra Bentinho e Capitu.
O trecho acima é o famosíssimo momento onde Bentinho descreve os “olhos de ressaca” de Capitu. Olhos que queriam tragá-lo pra dentro daquele mar que era o olhar dela. Antes, eu imagina os olhos de ressaca exageradamente grandes, oblíquos, de olhar incisivo. Mas depois fui aprimorando a visão, entendi que é o olhar e não os olhos em si. É o movimento das ondas em ressaca. É o movimento das pupilas e das imagens refletidas nelas.
Foi pelo twitter que li sobre o projeto Mil Casmurros. É uma leitura coletiva da obra de Machado de Assis em “preparação” pra série que vai ao ar pela rede Globo em dezembro. E quem quiser, pode até gravar um trecho também! Só precisa ter webcam e microfone!

9 comentários sobre “Olhos de ressaca

  1. Olá Flávia, depois da enésima visita ao seu blog, eu me perguntei “será que eu fui justa e deixei um comentário?” Realmente não me recordo, de qualquer forma, se tiver feito serei redundante com justiça. Adorei o seu blog. Seus extratos, suas impressões, a verdade e a poesia. Tenho alimentado a alma aqui e encontrado surpresas muito agradáveis. Me empolguei com esse texto sobre Machado, tenho completa adoração. Peço licença para os destaques que fiz deste mesmo livro.

    “Pádua roía a tocha amargamente. É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhação do meu vizinho.”

    “A verdade não saiu, ficou em casa, no coração de Capitu, cochilando o seu arrependimento.”

    “A insônia, musa de olhos arregalados, não me deixou dormir uma longa hora ou duas; as cócegas pediam-me unhas, e eu coçava-me com alma.”

    “Capitu sorriu abanando a cabeça com um ar que nunca achei em mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeição da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele adágio que quem o feio ama bonito lhe parece”

    Parabéns pelo blog! Mantemos contato.

    Rose

    Curtir

  2. Para todos que vêem Dom Casmurro não como a minissérie, mas sim como um ensaio para vida bohémia, deixo meus cumprimentos à Srta.

    Espero que um dia, sejas a Capitu de um Bentinho sem ciúmes

    Grato por este pedaço de vida em seu mundo, agora ele também é meu

    Curtir

  3. Não utilizo de palavras cultas nem tão pouco formais, venho por amar tal trecho do livro e amei a ênfase dada por você

    Curtir

  4. Após ter lido e relido, esse trecho diversas vezes , é impossível nao me encantar pela doçura e pela beleza expressas nas linhas escritas por Machado, ele foi incrível, e sera eterno.
    Parabéns pelo Blog, de muito bom gosto!

    Curtir

  5. Parabéns por seu blog, ressalto que os olhos de ressaca de Capitu sempre me instigaram, acho que compreendo bem o que significam quando os meus se tornam assim, desejosos de engolir a imensidão…li este livro aos 15 anos por indicação da professora de literatura e achei fantástico…forte diria para está idade, onde as metáforas podem soar disformes…no entanto, os olhos de ressaca nunca me deixaram…

    Curtir

  6. Eu como amante da Literatura, com toda certeza acredito que é uma das melhores definições de um olhar, ele a trata com um certo amor, paixão e ate um certo descontentamento porem e genial como ele ressalta casa caracteristica a endeusando !
    Grande machado de Assis

    Curtir

Deixe um comentário