Fragmento de Paixão

“Acho que eu estou apaixonado por você”. Aquilo me tomou de supetão. Absurdo. Incrível. Impossível. Ainda mais com o incidente de dias antes, a confusão, a má interpertação. Homem-menino-infeliz. A infelicidade nos faz carentes. Ou vice-versa. A carência nos faz infelizes. Ou vice-versa num eterno círculo vicioso. Mas quem nos faz apaixonados?
Você parece um fantasma aqui. Uma única conversa e deixamos de ser. Livraria. Eu moraria dentro duma, talvez numa próxima vida eu seja um livro. Um infantil, de páginas coloridas e talvez desses materiais laváveis. Assim, lido durante o almoço poderia me manchar de papinha sem perder palavra nenhuma. E minha história podia ser tão empolgante que até durante o banho eu seria necessária. Pra alegrar. Companhia. Talvez, mesmo sem palavras, eu fosse lido durante os sonhos. Mas o melhor momento de minha vida seria quando o irmão mais novo me roubasse enquanto a outra criança estivesse na escola. Eu seria redescoberto. Relido. Re-manchado. Reescrito. Revivido.
Eu podia ser um livro de capa dura, bordas douradas. Uma mão atenta, suave tocando os relevos, sentindo vontade de ler. Mas desistindo, sabe como é, livro muito antigo, palavras difíceis, folha amarelada, sem ilustração. Tantos motivos pra levar e tantos pra continuar ali, esquecido.
O paraíso deve ser uma livraria, só de livros novinhos. Aquele cheiro embriagante de correr as páginas em segundos. Tão diferente do cheiro de mofo das bibliotecas. Eu seria tão feliz se fosse um livro. Ou infeliz. Ou vice-versa num eterno círculo vicioso.
É uma honra essa paixão, essa declaração assim, tão, tão, espontânea. Merecia ser escrita na parte interna da capa de um livro. De livraria. Não de biblioteca, porque lá é público e todos saberiam nosso segredo.
É sério, não zombe da minha paixão!
Mas o que posso fazer? O que posso falar? Não sei o que te dizer! Eu poderia testar essa paixão, pra saber se é verdade, se é real. Questionar. Um jogo de palavras, questionário, adivinha. Ou podia ainda usar de mil argumentos para te fazer repensar, desistir. Quem iria se apaixonar assim, tão fácil? Por causa de uma livraria…
Não é fácil se apaixonar. É um processo estranho por detrás das cortinas da razão.
Por que insiste em dizer que está apaixonado? Deve ser carência, solidão. A gente confunde as coisas. Coração, razão, emoção, distração. Tudo rima!
É um sentimento estranho, pensa que vai gripar, mas não é isso. Pensa que deve ser alguma disposição dos astros, mas daí se lembra que não acredita em astrologia. Sorri bobo para uma parede e reflete que talvez você esteja perdendo a sanidade mental. Realmente é tudo muito estranho.
Mas tem que haver algo que desencadeia a paixão. Algo que te fez pensar diferente, uma similaridade, um gosto igual. Já houve tempo pra isso? Já houve conversa pra isso? Já nos vimos pra isso?
É verdade. Esse é um fator muito importante, talvez o mais importante de todos. Mas ele me foge, não admite se explicar. Vou procurar um psiquiatra, devo estar lunático.
A paixão faz isso com a gente. Nos deixa lunáticos. Mas talvez o objeto de sua paixão não seja real, seja algo q você fantasiou. A gente tende a isso. Ouve uma palavra solta por aí e acha que é pra gente. Olha em volta e pensa: “será esse? será dessa vez?”
Talvez seja isso mesmo. Eu tenho um amigo que uma vez se apaixonou por um cartaz de “Não Fume” que ele viu uma única vez no corredor do departamento de trânsito. Foi difícil explicar pra mim, o porquê de tanta paixão. E na verdade não conseguiu. Mas ele passou a receber propositalmente multas de trânsito e ir reclamá-las no departamento como uma tentativa de aproximação ao seu objeto de amor. É uma história um pouco triste. E acho que você não iria entendê-la. Estou falando muita bobagem. Desculpe. Vou me calar.
Realmente não é possível entender. A paixão é sem entendimento. Vício. Abstinência. Mas essa confusão, palpitação, alucinação, deve ser febre. Gripe. Eu mesma acho que uma vez fiquei gripada. Apaixonada. Gripada. Febril.
Estou sendo chato, melhor não falar mais disso.
Não, não, por favor! Achei poético. A paixão deixa a gente assim, dono das palavras! Ou sem palavras. E vice-versa num círculo vicioso.
Sim, deve ser uma transpiração febril. Vou embora. Anjo. Meu anjo. Como um anjo. Sou um anjo. Deixo aqui meus melhores sentimentos. Confusão. Paixão. Dúvida.
Não se preocupe, vai em paz. A febre sempre passa, assim como a paixão e as confusões.
E eu fico.
Aqui.
Sozinha.
Inalcançável.
Livro em estante alta.
Pó.
E mais nada…

10 comentários sobre “Fragmento de Paixão

  1. Prezada Poetriz,
    Um novo hábito tumultuou minha rotina. Tomar café com você. Com seu blog, digo. Antes de ter coragem de abrir o jornal, encontro seu blog. Leio. Não. Sinto esta lufada de seu texto. Seu texto que vira meu subtexto. Coisa de quem escreve bem. Coisa sua.
    E este post de hoje… Bem, esta rotina vai acabar virando vício.
    Para reduzir um pouco minha dívida com você. Como vã tentativa de retribuir um pouco da beleza que você tem trazido para minhas manhãs, vou exercitar meu dom. Às vezes professor, sempre um homem de ciência, tenho a capacidade de dar respostas lógicas, exatas e sem nenhuma dubiedade. Seu texto de hoje tem 10 perguntas que responderei abaixo de forma inequívoca.

    1)“Mas quem nos faz apaixonados?”
    Ninguém tem a mínima idéia. Se tivesse, manipularia minha capacidade de se apaixonar e a direcionaria para os dois grupos de pessoas ideais para nos apaixonarmos. As que se apaixonam pela gente ou as que não existem. Às vezes, é um só grupo. As que se apaixonam pela gente não existem. Como cientista cético, cheguei à seguinte conclusão lógico-cientifíca: só pode ser mandinga, determinada pelo signo e ascendente de algum espírito torto de Cupido moleque, que nos ronda.
    2)“Mas o que posso fazer? 3)O que posso falar?”
    Tudo e Tudo. Posso Fazer e Falar qualquer coisa. Mas se você pergunta o que pode fazer e falar para mudar a realidade, a resposta é Nada e Nada.
    4)“Quem iria se apaixonar assim, tão fácil?”
    Todo mundo. Ninguém se apaixona de forma difícil. Inexplicável, imponderável e muito fácil. Fácil como tudo o que é radical. Fácil e involuntário.
    5)“Por que insiste em dizer que está apaixonado?”
    Porque sim. Paixão é coisa tão profunda que é impossível de esconder. Quando apaixonado, digo isto o tempo todo. Se tento não dizer, digo assim mesmo.
    6)Já houve tempo pra isso? 7)Já houve conversa pra isso? 8)Já nos vimos pra isso?
    Não. Não. Não. Desde quando tempo, conversa, visão são pré-requisitos para a paixão? A única condição necessária é com certeza indubitável, Sei lá. Se fosse explicável, não seria paixão.
    9)“será esse? 10) será dessa vez?
    Com certeza. Com certeza. A cada vez é este, é esta. Será agora. Será de fato. Sabemos, eu, você e todo mundo que não será esse, nem desta vez. Mas, seguimos na esperança de estar errados. Então, a resposta é SIM, com certeza, quem sabe, talvez, muito dificilmente, improvável, sem chance…portanto, Vamos lá! Para os livros em estantes altas, sempre tem uma escadinha escondida em algum canto.
    Viu? Perguntas simples, respostas mais ainda.

    P.S- Uma pergunta só. Como meu paraíso/céu também será uma livraria, ou biblioteca talvez (com o aspecto do Gabinete Português de Leitura, no Rio), acho que vamos compartilhar do mesmo céu. Você se importa? Se sim, tudo bem, mudo o meu céu. Desde que tenha acesso à internet no meu e possa continuar encontrando você, antes do café,

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  2. Flaaaaaaaaaaaaaaaaa, a escritora!

    Se jogou, heim? O melhor texto da Poetriz 🙂
    Intenso, lúdico e tão profundo. Adoro quem cuida bem das palavras, adoro.
    E “ele” foi super fofo, não era gripe. É o limiar lunático que deixa a paixão exposta (eu vivo em busca do limiar, mas ele tá longe de mim).
    E viva a confusão, Flavinha ! Confusão em 3D. Chega de P&B! 😀

    Bjos

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  3. Que texto mais lindo!
    Pois é, a paixão nos deixa mesmo lunáticos. Ou sãos (?)… “Ou vice-versa num eterno círculo vicioso.” ?
    Lunáticos. E lunares. Tanto que os apaixonados começam a reparar (ou re-reparar) na lua. Que até parece sorrir quando minguante. Ou não, também.
    Estou parecendo o Caetano, já reparou que ele nunca fala coisa alguma? Ele fala, fala, fala e quando a gente começa a acreditar, ele fala ‘ou não’. Mas isso nem tem a ver com o texto… Ai, acho que você me contagiou! haha

    (Obrigada. Ou não.)

    beijos! :*

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  4. Lindo lindo lindo!
    LINDO!!!!
    E li em primeira mão *se gabando* hehehehehe

    Só discordo como disse da parte do cheiro de livro novo. Não… cheiro de livro antigo, mofo, poeira, encadernação antiga, rara, bonita, é muito mais charmoso e tem muito mais memória…

    Ah, sei lá, coisa de bibliotecária =D
    bjosssss

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  5. Olá, bom dia!
    Descoberta da “neurobiologia” afirma que o tipo e a concentração de um determinado hormônio que “anima” os loucos é o mesmo – tipo e concentração – daquele que anima os apaixonados, daí tanto desatino de um e de outro, mas, a paixão como a “loucura, são essenciais para, noOlhar, se perceber nuances da vida e do ser que passam despercebidas aos níveis usuais de “consciência”.

    Bjs

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